Sermão aos peixes
Apanho o material na garagem e faço-me à estrada, uma picada de 2 kms até à praia mais próxima num sábado quente e cheio de gente, não quero saber, quero pescar, tenho de entreter a minha cabeça com qualquer coisa, que seja na luta com um Sargo, um Pregado, um saco de plástico ou nada, tanto me faz, a cabeça é que tem de descansar, urgentemente.
Praia
Cheguei à Duna, pelo aspecto do parque de estacionamento isto está carregado de malta a passear os biquínis das namoradas comprados nos últimos saldos lá no shopping ou lá no..como é que se chama aquela coisa para onde a malta vai..humm, Brasil, é isso, prontos a serem estreados hoje.
Espreito para a praia e as minhas mais pessimistas previsões concretizam-se, Lisboa está aqui, coesa, bem juntinha, estacionada provisoriamente em toalhas, e eu com cana, balde (já sei para que é o balde...) e mochila às costas a olhar no cimo da Duna para a população qual Pedro o Pescador dizendo, - urbe, afastai-vos e deixai-me passar, pois tenho uma missão a cumprir.
Bem dito bem feito, jogo-me duna abaixo todo aparelhado de material quando de repente a urbe se vira e me contempla...estaco, paralisado caio em mim, o que raio é que eu estou a fazer àquela hora na praia de balde na mão e cana às costas ? Enlouqueci, pifei pensei, hoje, saturday afternoon fever, dia de Verão por excelência para as pessoas semanalmente confundidas de vida pela metrópole e eu aqui na praia convencido que ainda é Inverno e que isto está vazio de seres...
Inverti a marcha, virei as costas à multidão, que ouvi lentamente retomar a cadência balnear hipnótica e ritualizada com os gritos obrigatórios - O Ritinha olhaaaá bóla, e o mais famoso, - O Manél não me deixes a criança ir para a água, ólha-me a digestão, entremeados por irritantes tac-tac, tac, tac-tac...
"Com mil trovões e demónios filibusteiros para as raquetas da Ritinha", diria Hadock!
Olhei em frente para o cimo da Duna, olhei para trás, por cima do ombro, para a praia, hesitante...se ao menos um pouco de praia ainda estivesse livre, não serei derrotado pela multidão, não hoje, a necessidade de paz de espírito, alguém diria de expiação, fala mais alto, desculpa lá Pedro, mas hoje vais pescar, sobe as costas e enche o peito, ergue a cabeça e enfrenta-os, todos têm direito a qualquer coisinha e a tua é a de paz.
Agora sim, desço para a praia, confiante.
Entre cachos de grupos (unidade de medida balnear) fui sendo descoberto por alguns amigos que estupefactos me perguntavam para quê o balde, a mochila e a cana em tão cedo e agitada hora, - Bem, ahh, ia respondendo, tentando arranjar alguma explicação lógica para a situação, - Sabem, hoje está quarto-crescente (sei lá eu que lua é que estava, só me veio à cabeça o Império Otomano e as barbas do Sulimano) e daqui a pouco começa a mudança de maré e tal , e vou ver se apanho qualquer coisinha dizia, assim fui passando incólume pé-ante-pé fazendo um "largo" no mar de gente até descobrir uma zona mais vazia, apenas com uns nudistas e alguns binómios patrões-secretárias protegidos por corta-ventos ambos usuais efémeros residentes em zonas mais desertas de praia e olhares.
É aqui.
O burburinho era menor, já não ouvia ou via as raquetas da Ritinha,apenas um aglomerado policromático ao fundo e na minha frente o roar sísmico das ondas, partindo-se com grande violência, o "spray" da rebentação abraça-me o rosto, refrescante depois da caminhada.
- Bom, vamos então a isto, cana montada, carreto colocado, linha passada e chumbada, chumbada? Oops, deixei as chumbadas mais pesadas em casa, apenas uma de 160 gramas escondida numa bolsa olhava-me dizendo, me usa, vai....
Com este mar ? Em menos de 20 minutos desaparecerias para lá do Cabo!
Olhei para a Duna, não tinha percebido o quanto tinha andado, estava bastante longe do carro, nem pensar em voltar agora a casa, esta chumbada que me olhava tinha de dar para a tarde toda e início de noite, que pescador de ocasião eu saí pensei, se o Varela ou o Ferreira me vissem (pescadores locais a quem a autarquia já deve no mínimo uma estátua no topo da Duna:)...enfim,mudança de estratégia, vamos então inventar uma nova modalidade de surfcasting, a batida ao Sargo.
Coloquei o apoio da cana no centro de uma meia circunferência imaginária, lanço para a minha direita e a chumbada levezinha, coitada, como que montada num cavalo marinho juntamente com o camarão nos três anzóis nº2 são imediatamente arrastados pela forte corrente de Noroeste, passam à minha frente e todo o conjunto é cuspido pelo mar em breves minutos à minha esquerda.
Neptuno grita - Não te quero! Volta para casa e enfrenta-me quando estiveres preparado!
Não, não serei derrotado, hoje não e aqui à teus pés o reafirmo!
Com calma deixo passar o "set" e depois a bonança, o suficiente para fazer novo lançamento e ter o isco mais uns minutos dentro de água, a 80 metros da linha da maré, ali onde a rebentação revolve o fundo e o peixe se alimenta, seria assim que iria proceder até à ferragem, olhando para a ponteira da cana tencionada, esperando, pacientemente, quando um leve tremor na linha me fez subir os níveis de adrenalina...espera...pode ser o mar...olhei em volta, sem rebentação, estava calmo, não, não podia ser mar, olhei de novo para a cana, batia loucamente, era Peixe!!!
Começei a caçar a linha lentamente, sempre tensionada e finalmente lá apareceu na espuma o meu almoço de Domingo, um sargo, batendo freneticamente, lindo na sua dignidade, nobre vítima do meu camarão que os sucos o fizeram perder.
Venci.
Com o entusiasmo depressa se faz noite, a multidão há muito que abandonou a praia, apenas eu e a lua num céu vermelho antecipando mais um dia quente, o sargo sozinho no balde com olhar gozão piscando-me o olho dizendo, - deixa lá melhores tempos virão, amanhã será outro dia, são horas de irmos.
Subo a Duna escondida pela noite, a minha paz vai ficando para trás no burburinho de gente, no som das raquetas da Ritinha, nas pegadas na areia, nos peixes e no Oceano.
- Sim Sr. Sargo, amanhã será um outro dia, eu cá estarei à tua espera, até qualquer dia!